UM HERÓI DO DOURO

Quem vai ao Porto ou a Vila Nova de Gaia, ao admirar as águas mansas do Rio que separa estas duas cidades vê nas margens de Gaia uma dezena de Barcos Rabelos estacionados, cada um com o nome de uma Casa produtora de Vinho de Porto.

Estes Barcos Rabelos, cujo nome deriva do cumprimento e pintura de seu leme, que ao ser decorado deixava o Barco com um “rabo belo”, foram os grandes Heróis anônimos dentro da história do Vinho do Porto. Foi através dos vinhos transportados por estes barcos, que desciam do Alto Douro até Vila Nova de Gaia que o famoso Vinho do Porto chegou aos quatro costados do mundo.

Um Rio cheio de surpresas desagradáveis em seu leito, fez com que os habitantes suas margens desenvolvessem um barco cujas origens até hoje são desconhecidas, com um fundo chato, como eram as embarcações Fenícias, para que a navegabilidade do Barco não fosse traída pelas pedras que se encontravam no fundo do rio. O que impressiona nesse tipo de barco é a sua capacidade de transporte, havia Rabelos que transportavam de cinco a até 80 pipas de 550 litros cada uma. Um enorme peso que exigia de sua tripulação uma habilidade e técnica que não se ensinava nas escolas, mas somente na pratica. Sempre foi um ato de heroísmo sair de um dos 68 cais que existiam nas margens do Rio e seguir viagem até Vila Nova de Gaia para o descarregamento do barco. Se levar o vinho era difícil pela força da correnteza e mais os obstáculos que se encontrava á frene, imagine voltar com o barco rio acima!! Um trabalho onde homens e bois dividiam a tarefa de puxar o barco até o seu lugar de origem!

Tal trabalho foi realizado durante séculos e só teve fim em setembro de 1965. Mesmo com a chegada do trem no Alto Douro Vinhateiro em 1879, esse trabalho não parou, pois, as pipas de vinhos eram recolhidas nas margens do Rio e lavadas até a estação de comboio mais próxima, para e não seguir até a cidade do Porto.

Registrados com habilitação para navegarem e transportarem pipas de Vinhos só no ano de 1940 existiam 339 Barcos Rabelos fazendo este sobe e desce pelo rio. Ser marinheiro em um Barco Rabelo era uma profissão de alto risco, acidentes não eram incomuns, principalmente na época das grandes cheias do rio, cujo alto volume de água escondia os trechos mais perigosos desse percurso. Mesmo tendo havido uma grande crise no Douro a partir de 1863, ano em que se descobriram as primeiras vinhas atacadas pela praga da Filoxera Vastastes, muitos conseguiram boas colocações trabalhando nesses barcos, onde cada um tinha uma função específica e uma responsabilidade enorme para o sucesso da viagem. As categorias de trabalho dentro de um barco era assim composta: Arrais, dono do barco, Feitor de Proa, comandava os empregados destinados a proa, Feitor de Espadela ou Mestre, comandava o leme, era o mais importante marinheiro do barco, tinha que ter grandes habilidades  o sucesso da viagem dependia quase que totalmente de sua perícia, o Moço, o que se responsabilizava pela comida á bordo, cozinhava e servia a comida, Cabestreiro, que controlavam todas as cordas da vela, Vinhateiro ou Fiel, o que cuidava das pipas e do vinho, os Ponteadores da Pá e da Ré, que cuidavam dos remos. No ano de 1886, no Conselho de Mesão Frio, cadastrados havia 638 marinheiros habilitados para essa função.

O retorno de um Barco Rabelo á sua Vila de origem era celebrada com muita festa, embora a viagem de ida e volta não durasse mais que dez dias, a algazarra era tanta que parecia que não se viam há meses! Mas na verdade, a celebração era pela vida, pois todos sabiam quão perigoso e arriscada era essa viagem.

Esse Herói do Vinho do Porto é reverenciado todos os anos no dia 24 de junho, dia de São João, data máxima da religiosidade da cidade do Porto. Nesse dia a Confraria do Vinho do Porto organiza uma corrida entre os Barcos que hoje estão estacionados em Vila Nova de Gaia. O percurso é da Foz, um pouco antes do Oceano Atlântico, até ao Cais da Ribeira, em Gaia. O vencedor tem o direito de inçar em seu mastro maior a Bandeira da Vitória até o ano seguinte na realização de nova corrida.

Se hoje ainda temos o privilégio de vez por outra degustarmos um Vinho do Porto anterior a data de 1965, o devemos ao bom trabalho desses marinheiros corajosos, que não se renderam as então furiosas águas do Rio Douro.

Carlos Cabral